RIVAR Vol. 5, N° 14. Mayo 2018: 24-38.


 

Artículos

O alimento na sociabilidade das comadres e compadres na dinâmica agroalimentar do Cariri Rural*

Food in Godmothers and Godfathers Sociability on Agroalimentary Dynamics of Rural Cariri

 

Ariza Maria Rocha**

**Departamento de Educación Física de la Universidad Regional del Cariri (Urca), Crato, Brasil. Doctora en Educación por la Universidad Federal del Ceará (UFC). Correo electrónico: ariza.rocha@urca.br

 


Resumo

Este artigo objetiva discutir o alimento na dinâmica das relações vicinais em algumas comunidades rurais caririenses localizadas nos municípios do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Aurora e Milagres. O quadro conceitual apoiou-se na teoria da dádiva de Marcel Mauss (2003) e o metodológico amparou-se na pesquisa etnográfica e na história oral. Os sujeitos da pesquisa foram 24 famílias residentes em comunidades rurais (chamadas de “sítios”), com o seguinte perfil: homens e mulheres na faixa etária de 21 a 93 anos, que permitiram acompanhar o cotidiano das cozinhas locais, bem como a transferência do conhecimento, práticas e saberes na distribuição social do alimento na comunidade. Para tanto, foram utilizadas observações, registros fotográficos, anotações no diário de campo, entrevistas semiestruturadas e análise das narrativas. A criação de uma cultura da doação do alimento nas comunidades rurais do Cariri, em que a sociabilidade, a tradição dos costumes locais e a solidariedade vicinal são destaque como parte do processo de sociabilização entre muitos compadres e comadres, ultrapassando os mecanismos de uma economia capitalista. Por esse caminho, acredita-se que o alimento preserva e, ao mesmo tempo, inova o patrimônio agroalimentar, além de construir e reconstruir a identidade da região.

Palavras-chave: alimento, doação, vizinho.


Resumen

Este artículo propone discutir la comida en la dinámica de las relaciones vecinales en algunas comunidades rurales caririenses ubicadas en los municipios de Crato, Juazeiro, Barbalha, Aurora y Milagros. El marco conceptual se apoya en la teoría de Marcel Mauss (2003) y el metodológico en la investigación etnográfica y en la historia oral. Los sujetos del estudio fueron 24 familias que viven en zonas rurales (llamadas “sitios”), con el siguiente perfil: hombres y mujeres de 21 a 93años, quienes permitieron seguir la vida diaria de la cocina local, así como la transferencia de prácticas y conocimientos en la distribución social de los alimentos en la comunidad. Para ello se utilizan registros fotográficos, notas en el diario de campo, entrevistas semiestructuradas y análisis de las narrativas. La creación de una cultura de donación de alimentos en las comunidades rurales del Cariri, donde la sociabilidad, la tradición de las costumbres locales y solidaridad vecinal se ofrecen como parte del proceso de socialización entre muchos padrinos y madrinas y más allá de los mecanismos de una economía capitalista. De esta manera se cree que los alimentos preservan y, a la vez, innovan la propiedad agroalimentaria, además de construir y reconstruir la identidad de la región.

Palabras clave: alimento, donación, vecino.


 

Introdução

Esta comunicação aborda as interações do ato alimentar com ancoragem territorial a partir da dinâmica das relações vicinais com as dimensões constitutivas da vida social nas comunidades rurais do Cariri. A par disso, seria impossível compreender o papel da comida como aglutinador de sociabilidade e identidade territorial se o entendimento de que “comer certos pratos é ligar-se ao local do produto” (Cascudo, 1967: 34).

A comida congrega e estabelece relações de convívio em que a partilha do alimento e do ato de comer com familiares e amigos desperta a participação da “comunidade doméstica e cada prato terá valôres de uma sucessiva integração familiar” (Cascudo, 1967: 36). É a partir desse compartilhar que o “de comer” também se manifesta na relação vicinal, notadamente no meio rural, fazendo jus ao ditado popular de que “nossos vizinhos são os nossos parentes mais próximos”. A respeito dessa relação, Cascudo (1960: 2) elucida:

[...] não há, entretanto, instituição humana mais antiga no plano colectivo.

Creio que foi a primeira “concordata” verbal e tácita entre famílias dos agricultores. A aproximação das residências determinou justamente este código imemorial de favores e auxílios, um código expresso, jamais escrito, mas conhecido, imperioso e severo em sua expressão de Boa Vizinhança. As aldeias, vilas e cidades pequenas de todo o Mundo ainda conservam parte vultosa dessa ordenação milenar.

Para o referido estudioso, tal prática no Brasil está enraizada na cultura dos primeiros portugueses que embarcaram na província de Trás-os-Montes e aportaram na Colônia brasileira. Em sua justificativa, o autor recorre à composição do Padre Firmino A. Martins, “Folk-Lore do Concelho de Vinhais”, publicada em Lisboa em 1939, para descrever a relação entre vizinhos lusitanos:

É digna de nota a solidariedade entre vizinhos, também demonstrada no uso dos utensílios e móveis emprestados, no auxílio nos trabalhos, nas doenças, nos funerais, na demanda, na “justiça”, na despedida do que ia para a vida militar ou para terra estranha presenteando-o na ida e no regresso; na visita à parturiente, a que cada vizinha leva presentes, em geral galinhas; na prova dos vinhos novos, correndo-se às adegas; no fiandeiro e na escarrapiça, em que todos se reúnem na rua, a fiar ou escarrapiçar, cada noite para seu vizinho; nas visitas nos dias de festa e nas malhas, comendo e bebendo à farta uns em casa dos outros; no próprio baile dado em casa particular, em que todos se arrogam o direito de entrar, a qual, se lhes é negada, fazem cumprir pela violência, dizendo em alta grita: “aqui não há leis novas!”; nas visitas no dia de entrudo a todas as casas, ainda as mais pobres, em que ‘deitam o entrudo fora’, dando tiros de espingarda caçadeira; no repasto do folar, na romaria, a que voa juntos, formando a “ronda”, em grupos isolados, e comendo juntos a merenda pingue (Martins citado em Cascudo, 1960: 6).

Com ressalvas regionais, a semelhança registrada no quadro acima é perceptível em muitas das práticas de boa vizinhança no Cariri. E mais: apesar de muitas mudanças dos fenômenos associados com a produção, elaboração e consumo de alimentos ocorridas tenham atingido a identidade agroalimentar de determinadas regiões, elucidamos que a dinâmica da troca alimentar entre os vizinhos ainda perdura, aqui e ali, especialmente em certas comunidades locais, a exemplo de alguns sítios localizados nos municípios de Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Aurora e Milagres.

Este artigo tem o objetivo de contribuir no debate da dinâmica alimentar que ocorre nas relações vicinais como mecanismo de transferência de práticas e saberes empíricos pela distribuição social do alimento em algumas comunidades rurais caririenses. Contudo, evidenciamos que os alimentos e culturas alimentares, ancorados espacial e temporariamente a um território, constituem referências de caráter complexo, por isso não temos a pretensão de esgotar o assunto nestas poucas páginas.

Nessa direção, apoiamo-nos no quadro conceitual de Bezerra (2014), Canesqui (2005), Cascudo (1960), Flandrin e Montanari (1998), Mauss (2003), Menasche (2007) e Montanari (2008), enquanto recorremos à pesquisa etnográfica no referencial metodológico. Utilizamos a observação participante com homens e mulheres na faixa etária de 21 a 93 anos, com o intuito de conhecer as práticas e saberes alimentares, e a entrevista semiestruturada para apreender o cotidiano alimentar de 24 famílias residentes em zonas rurais do Cariri, no mês de abril, maio e junho de 2013, chamadas de “sítios”.

Com a anuência dos sujeitos, apresentamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para explicar os passos da investigação e diminuir os riscos de constrangimentos que porventura a entrevista semiestruturada e o registro fotográfico pudessem ocasionar nas práticas alimentares dos atores sociais.

Esta comunicação divide-se em três tópicos. No primeiro, apresentaremos a região do Cariri. Em seguida, exibiremos o papel do alimento no processo de integração social e territorial a partir do conceito de dádiva do sociólogo francês Marcel Mauss no cotidiano dos atores sociais, criando e recriando os mecanismos da transferência que emergem das práticas, saberes empíricos, conhecimentos e distribuição social do alimento orientados pela dádiva. Por último, arriscaremos a tratar da contribuição do alimento como dádiva na identidade territorial e no patrimônio agroalimentar da referida comunidade.

O estudo tem a relevância de ajudar na compreensão do alimento, que proporciona, pela troca, doação e distribuição alimentar, os laços sociais, o desenvolvimento econômico e a sociabilidade humana através de uma economia de oferta carregada de sentidos e significados simbólicos.

 

O patrimônio agroalimentar do Cariri

A princípio, esclarecemos que o espaço geográfico foi a região do Cariri, localizada na chapada do Araripe, ao sul do Ceará, nos municípios do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Aurora e Milagres, dada a facilidade de acesso aos informantes.

 

Figura 1. Localização do Cariri

Fonte: adaptação de Brasil (2010).

 

Etimológicamente, Cariri significa “tristonho, calado, silencioso” (Pinheiro, 2010: 11), originário dos índios Kariri, primeiros habitantes da região antes da chegada dos portugueses ao interior do estado, por volta do século XVII. O território caririense possui área de 16.350,40 km2 e possui 28 municípios divididos em microterritórios: Central, Leste e Oeste, ou seja, os municípios de Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha e Missão Velha estão no microterritório central do Cariri, com uma área de, aproximadamente, 5.099,7 km2, enquanto o município de Aurora está situado na região microterritório leste, que possui uma área em torno de 4.656,1 km2 (Brasil, 2010). Com relação ao Produto Interno Bruto Geral do Cariri, relacionado ao estado do Ceará, é de 6,15%, correspondendo a um total de R$2.847.908 (Brasil, 2010), distribuídos no setor agropecuário (R$282.675), industrial (R$449.934) e de serviços (R$2.115.299).

O Cariri é banhado pela bacia hidrográfica do Salgado (antigo Jaguaribe-Mirim) e do Alto Jaguaribe e favorecido por 294 fontes naturais cujas vazões “são sempre bem maiores que as dos Estados de Pernambuco e Piauí, sendo que 13 delas ultrapassam 100 m3/h” (Brasil, 2010: 173). Nessas condições, o território possui infraestrutura hídrica autossuficiente, possibilitando o desenvolvimento de “atividades produtivas agrícolas, não-agrícolas e industriais, com destaque para a fruticultura irrigada, a piscicultura, o turismo ecológico e um parque de agroindústrias, entre outras” (Brasil, 2010: 166). A água possibilitou a escolha dos locais de muitos povoados originados a partir de uma casa, uma capela e um açude (Pinheiro, 2010).

O território conta ainda com unidades de conservação de seu território compostas pela Floresta Nacional do Araripe, que “fornece alimento (pequi, cajuí, mangaba), energia (lenha) e remédios (janaguba, barbatimão, favereira)” (Brasil, 2010: 180), pela Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe (APA), pelo Parque Ecológico das Timbaúbas e pelo Geopark Araripe, que é o primeiro geoparque das Américas reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO.

Apesar da riqueza do solo, da vegetação e do clima, o investimento no setor agropecuário ainda é baixo, o que repercute na importância de incentivar e resgatar o patrimônio cultural, principalmente os saberes e os fazeres da alimentação da região, práticas provenientes do meio rural manifestadas nos momentos do cotidiano familiar, como também nos festivos regionais. É o caso da Festa do Pequi, Festa do Fubá, Farinhada, Festa da Mandioca, Festa Agropecuária Expocrato, Berro Cariri, Festas Juninas, Festa do Peixe (Potengi) e Festas de Renovação, que se comemoram com a alimentação tradicional da região, a exemplo do pequi, mungunzá salgado, sequilhos, tapioca, baião de dois, filhós, broas, bolo de milho, bolo de puba, pé de moleque, fubá, pamonha, canjica, farinha, etc.

Comemorar a safra do milho, pequi, algodão, feijão, mandioca, etc. significa celebrar a comida na mesa, fartura na alimentação e dinheiro extra no sustento da família. Em relação às populações urbana e rural, os municípios estudados apresentam a seguinte distribuição.

 

Tabela 1. População rural e urbana do territorio

Fonte: Brasil (2010: 24)

A Tabela 1 revela que o Cariri é composto por 68% de uma população urbana, enquanto a rural corresponde a 32%. Ainda com base nos dados da fonte anterior, encontramos o número de estabelecimentos da agricultura familiar e não familiar, os quais estão representados na tabela adiante.

 

Tabela 2. Número e área dos estabelecimentos rurais da agricultura familiar e não familiar no território do Cariri, 2009

Fonte: Brasil (2010: 236).

 

Consideramos agricultor rural aquele proprietário de pequenas terras que conta com a mão de obra familiar para o trabalho e gestão da produção de subsistência. Nesse sentido, recorremos à família agricultora que tem como base a mão de obra do campo, correspondendo a 82,9% no Nordeste brasileiro. Nesse cenário, o estudo de Carneiro (2008) enfoca a agricultura familiar e suas atividades agrícolas e não agrícolas no Plano de Desenvolvimento de Agronegócios na dinâmica do meio rural caririense. Conforme a tabela 2, o Cariri possui 57.493 estabelecimentos da agricultura familiar; correspondendo 52.030 estabelecimentos da agricultura familiar, abrangendo área de 399.639 hectares; e 5.463 estabelecimentos são da agricultura não familiar, correspondendo a 353.631 hectares, e esse setor produtivo apresenta as seguintes características:

O Setor produtivo do território está inserido no diagnóstico, o desempenho dos setores pecuário (ovinocaprinocultura, bovinocultura e suinocultura), tendo em vista o potencial da criação de pequenos animais no microterritório Cariri Oeste e o desempenho da bovinocultura leiteira no Cariri Leste. Quanto à fruticultura, também é apresentado o diagnóstico das principais culturas trabalhadas no Território, como a banana, cajucultura, através da produção de castanha, o pequi e a cana-de-açúcar, tendo em vista que o Cariri apresenta potencial quanto ao desenvolvimento desta cadeia, principalmente, nos microterritórios Cariri Central e Leste, com áreas propícias ao desenvolvimento e implementação do cultivo de fruteiras. Assim, estas cadeias são apresentadas pelos seguintes eixos: culturas de subsistência, fruticultura e pecuária (Brasil, 2010: 204).

Na contramão dos grandes latifúndios e agroindústrias, está a agricultura familiar, que é responsável pela produção de grande parte dos produtos agrícolas brasileiros, entre eles, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006), a produção de 84% da mandioca, 67% do feijão e 49% do milho, constituindo a base alimentar da região. Na formação alimentar do Cariri, encontramos o pequeno agricultor rural plantando mandioca, feijão, milho, arroz, hortaliças, frutas, plantas medicinais e ainda mantendo uma pequena criação de animais domésticos, como, por exemplo, de porcos e galinhas, que são alimentos para o consumo familiar, servindo também para vender ou para presentear um vizinho, criando-se, com isso, um sistema de partilha da comida nas relações de solidariedade. Geralmente, os indivíduos envolvidos, para além de uma relação de parentesco, tornam-se compadres (ao se referir aos homens) e comadres (ao se referir às mulheres), como teremos ocasião de descrever nas próximas páginas.

 

O alimento na dinâmica alimentar nas relações vicinais do Cariri

A comida é uma categoria social que revela as muitas faces da relação do homem com o alimento, que “é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade” (Damatta, 1986: 55), como ocorre com os vizinhos que passaram a ter uma relação de confiança e solidariedade e tornaram-se compadres e comadres. É na intimidade dessa relação que encontramos a permuta do alimento e seu papel social e econômico na região.

Trata-se de uma relação de troca da comida como dádiva para a vida toda, ou pelo menos, até onde perdurar a amizade entre os vizinhos. O compadre e a comadre criam vínculos e fortalecem a relação com base em uma afinidade espiritual, ou seja, uma solidariedade vicinal na qual acontece a circulação da comida como dádiva; no sentido maussiano, aborda a configuração da troca do alimento entre os vizinhos no contexto rural do Cariri como fenômeno associado com a produção, elaboração e consumo de alimentos.

Antes de prosseguirmos com as explicações sobre o referido processo alimentar, convém, esclarecemos que há várias versões para o uso do termo de compadres e comadres. Primeiro, pode ser utilizado na ocasião do nascimento de uma criança; na oportunidade, escolhem-se os padrinhos para o batizado, que assumem, na maioria dos casos, a responsabilidade pelo futuro da criança, no caso de ocorrer a impossibilidade de criação por parte dos pais verdadeiros. Nesse caso, os adultos tornam-se compadres/comadres e as crianças, afilhados(as).

O outro caso procede da palavra latina cumpanis, referindo-se à pessoa com quem partilhamos o pão, juntamente com o vinho e a carne. O pão é um alimento que teve, no decorrer da história da humanidade, a importância alimentar carregada de significados simbólicos, sejam religiosos ou imaginários. O compartilhar o alimento entre os comensais estabelece laços de confiança e reciprocidade, assim criam-se os vínculos entre os vizinhos, que, como forma de tratamento, são chamados de compadres e comadres. O importante é que, tanto no primeiro caso, como no segundo caso, encontramos a permuta alimentar.

Essa mutualidade de oferecer, retribuir e acolher a oferenda remonta de sociedades consideradas primitivas e antigas, a exemplo dos Polinésios, Melanésios e também das sociedades do Noroeste americano citadas pelo sociólogo Marcel Mauss (1872-1950) no “Ensaio sobre a dádiva”, no capítulo que compõe a obra Sociologia e antropologia (2003).

Estudada por Mauss e Davy nas tribos arcaicas, a dádiva tratava-se de um estado de espírito entre o anfitrião e o visitante em que a troca de presentes tinha o caráter voluntário, contudo os versos do poema do Havamál, de Eda Escandinavo (2003: 187), publicado na citada obra explica que: “um presente dado espera sempre um presente de volta”. Nesse contexto, a troca de presentes era também obrigatória e permanente sob pena de guerra privada ou pública.

A troca descrita, acima, acontece com a comida que faz parte dos agrados entre os moradores de sítios do Cariri, indo desde o oferecimento de fruta, carne de porco e seus derivados - como, por exemplo, a gordura (também chamada de banha e usada como substituto do óleo industrializado de cozinha), o toucinho (também conhecido como torresmo, que é a pele do animal cortada com a gordura para fritar e servir bem crocante) e o chouriço (Bezerra, 2014) -, à oferta de bolo e raiz de uma planta à feitura do chá ou canja à vizinha que se encontra “acamada”.

Na teoria maussiana, a dádiva diz respeito a uma aliança, com base na sociabilidade e na reciprocidade da doação e circulação de bens materiais ou imateriais (amabilidades, regalos, hospitalidades, banquetes, etc.) na forma de presentes trocados entre os envolvidos, cujas partes presenteavam-se mutuamente a oferecer, receber e retribuir, no ensejo de criar e fortalecer o contrato moral e a economia entre os integrantes dos clãs, tribos e famílias de uma coletividade. A respeito da economia, Mauss elucida:

Em diversos momentos, viu-se o quanto a economia da troca-dádiva estava longe de inserir-se nos quadros da economia supostamente natural, do utilitarismo. Esses fenômenos consideráveis da vida econômica de todos os povos - digamos, para maior clareza, que eles são bons representantes da grande civilização neolítica - e as sobrevivências consideráveis dessas tradições, nas sociedades próximas de nós ou nos costumes das nossas, escapam aos esquemas geralmente apresentados pelos raros economistas que quiseram comparar as diversas economias conhecidas (Mauss, 2003: 301).

Nas palavras do antropólogo, era uma economia diferente daquela voltada ao capitalismo, por enfocar a doação fundamentada em valores (moral, sentimental e venal) entre os indivíduos que oferecem dons, bens ou serviços com base em uma relação de voluntarismo, reciprocidade e convenção social, proporcionando a circulação e troca de ofertas.

Com base nesse princípio, muitas famílias do meio rural ainda possuem criação de animais domésticos, como, por exemplo, galinha, capote, capão, carneiro, bode e porco, que são criados no quintal, também conhecido por terreiro. E é dessa criação que é separada uma parte ao consumo familiar e a outra distribuída pelos familiares e vizinhos, ou melhor dizendo, permutado por outros alimentos que, faltam aquela família e ajudam a complementar da refeição. Por exemplo, se foi dado um pedaço da carne de porco, o vizinho oferece as frutas para um suco, os vegetais para a sopa ou caldo ou uma erva medicinal para fazer um chá, mas, ninguém, fica “sem o de comer”.

Na narrativa de Dona Expedita está a criação caseira de animais domésticos sem a necessidade de comprar a carne nos frigoríficos ou matadouros, pois, quando um vizinho mata o porco em seu quintal, é costume oferecer ao próximo, já que ele fará a mesma partilha e distribuição entre os familiares, amigos, vizinhos, compadres e comadres.

Destacamos o sistema de troca de comida em que aquele que mata o porco reserva e oferece partes da carne como medida do grau de reciprocidade na comunidade, assim, evita-se conflitos, a exemplo de uma “ciumeira”, entre as partes envolvidas já que a permuta da dádiva ocorre, segundo algumas regras, com valores correspondentes.

Frisamos que não há uma preocupação entre os moradores em estabelecer uma medida padrão para as trocas e, sim, o estabelecimento de laços de convivência. Por esse motivo ou, talvez, pela ausência de uma balança para pesar os alimentos nas comunidades locais, o cálculo era realizado pelo tamanho de uma mão, ou seja, por “palmos”. A esse respeito, Dona Isabel (70 anos, moradora de Aurora-Ceará) explica que: “Para cada pessoa, o seu pedaço; antes, não se pesava a carne e a distribuição era feita por dedo, dois dedos de largura, uma mão, chegando a até um palmo, que hoje pode-se dizer que era oferecido quase dois quilos ao vizinho mais próximo, ou o ‘mais chegado’”.

Portanto, reforçamos que a imprecisão das medidas é uma prática comum, já que a própria comunidade tem seu sistema de medição, a exemplo do “palmo, dois dedos ou uma braçada”, logo, a distribuição da carne de porco segue a seguinte diretriz: quanto mais próximo é a relação de amizade com o vizinho, maior é a quantidade do alimento oferecido que vai de uma escala com os seguintes valores: “dois dedos de toucinho”, “uma palma da papada” ou “uma braçada de mocotó”.

Assim, para além da precisão dos pesos e medidas culinárias, a porção pertence ao sistema simbólico tradicional de convívio do local em que a forma de vida da vizinhança não é limitada pelo tempo, seja bom ou ruim, e muito menos pela permuta automática de dar e receber, mas de agradecer através da retribuição da atenção recebida pelo vizinho sempre que for possível.

Por esses agrados alimentares, a mutualidade nas trocas de dádivas evita a inimizade entre os vizinhos, conforme as palavras de Dona Maria (85 anos, moradora do Crato-Ceará): “É melhor agradar o vizinho para não ter um inimigo por perto”. Nesse sentido, a doação do alimento é simbólica, imbuída de sentidos, saberes e práticas, que circula como moeda de troca de solidariedade e sociabilidade entre os moradores de uma comunidade. Como afirma Menasche (2007:170): “a aceitação de uma dádiva cria comprometimento. A obrigação de retribuir garante a permanência, o pertencimento, reiteram-se os laços, constitui-se a aliança”. E, se a lição de convivência na troca de dádiva for seguida, estabelecem-se os laços de confiança e paz.

Salientamos que a troca da dádiva é livre, mas aquele que recebeu o alimento tem a obrigação moral de retribuir quando a situação se inverter, pois parte-se da convenção de que o oferecimento de uma dádiva deve ser retribuído, estabelecendo-se, pois, uma aliança que não está escrita em lugar nenhum, mas que é vivenciada no dia a dia, ano após ano, na relação vicinal no meio rural do Cariri.

Nesse sentido, elucidamos que não se trata, simplesmente, de uma troca utilitária ou interesseira, mas, do compartilhamento da amizade, através da troca da comida em uma relação diária e, não apenas em momentos festivos, entre os vizinhos e, que a equivalência da permuta corresponde à subjetividade dada ao valor da amizade entre os compadres e comadres da vizinhança.

Observamos, então, a criação de uma cultura da doação do alimento nas comunidades rurais do Cariri, em que a sociabilidade, a tradição dos costumes do local e a solidariedade destacam-se como parte do processo de sociabilização entre os vizinhos que promovem a circulação da comida-oferenda na comunidade.

Dos povos primitivos que exerciam a dádiva na obra de Mauss ao Cariri, apresentaremos, a seguir, a comida no contexto da criação de mecanismos de transferência de saberes, conhecimentos e distribuição social e econômica da comida no meio rural do Cariri cearense.

 

A dádiva alimentar no mecanismo de transferência das práticas e saberes da comida no Cariri rural

A comida circula entre os vizinhos e, acoplado ao sabor da iguaria, está o patrimônio cultural do local em que se manifesta a distribuição social e econômica de práticas de produção empregadas na agricultura familiar, criação de pequenos animais domésticos, saberes e práticas na elaboração da comida através de receitas culinárias que atravessam gerações e, que, em uma conversa, festa ou momentos religiosos, o conhecimento é transferido para a economia da região, conforme, trataremos a seguir.

Antes de continuarmos, explicaremos a diferença do significado do alimento e da comida, pois, se, por um lado, o alimento está voltado a manutenção biofisiológica, a comida retrata a cultura e DaMatta (1986:55) confirma-nos isso: “Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade”.

Dessa forma, a doação da comida circula de vizinho para vizinho, fortalecendo os laços de união, amizade e socialização da dimensão cultural das relações e dos significados sociais enquanto construções coletivas e constitutivas da identidade de uma região. Gonçalves (2002: 9) explana:

Desse modo, a exemplo de outros “itens culturais”, a alimentação desempenha não só uma função identitária, mas também, no plano mais inconsciente, uma função constitutiva. Insisto em que não basta dizer, portanto, que determinados alimentos são escolhidos para representar uma identidade nacional ou regional. É preciso responder por que especificamente (seu modo de obtenção, de preparação, de consumo, as ocasiões em que são consumidos, etc.) são coletivamente celebrados em detrimento de outros.

Assim, o alerta de Gonçalves ajuda a refletir de que forma a comida é distribuída e gera mecanismos de transferência de práticas e saberes em torno da vida familiar do local. De início, apresentaremos a produção dos principais plantios na agricultura familiar da comunidade e, por esse viés, é possível abordar a formação alimentar de algumas famílias.

No contexto caririense, o agricultor rural planta, principalmente, a mandioca, feijão, milho, hortaliças (maxixe, jerimum), frutas (Macaúba, pitomba, caju, manga, siriguela, banana, entre outras) e as ervas medicinais (erva-doce, endro, capim-santo, cidreira e etc.), além da pequena criação de animais domésticos, a exemplo do suíno e da galinha, de tal modo que, no espaço da roça, do terreiro ou em um pequeno quintal, os ensinamentos de pais são repassados aos filhos sobre o plantio, desde o preparo da terra à colheita, como também, a fartura da colheita é um motivo para oferecer ao vizinho.

Outro espaço de permuta alimentar e de conhecimento encontra-se na cozinha. Local prazeroso e de labuta em que se cumpre, diariamente, um ritual de transformação do alimento em intercambio de saberes, ajuda mútua e comunicação entre as famílias, vizinhos e a comunidade, tanto do presente quanto do passado dos sujeitos da pesquisa. Lá, além de registrar o patrimônio que pertence a história da alimentação do Brasil, as receitas culinárias são as “testemunhas[s] das práticas culinárias do seu meio e da sua época” (Flandrin e Montanari, 2001:70) e eis algumas iguarias ensinadas pela comunidade e que revelam a identidade agroalimentar do lugar:

Canjica. Também conhecido como curau. Quebra o milho verde, moei, coa, leva tudo para a panela, acrescenta sal e espera até a fervura. Coloca nos pratos e salpica canela em cima da canjica.

Cuscuz. Também conhecido como “pão de milho”. O cuscuz pode ser servido como prato principal nas refeições, mas, também pode ser apreciado puro ou com leite, manteiga ou com o molho da carne.

Munguzá. É uma refeição muito forte. Pega o milho e pila. Depois mistura o milho com a palha (película) e molha, um pouquinho, para depois levar ao fogo. Acrescenta o toucinho, mocotó, orelha de porco, feijão e a verdura (cebola, tomate, jerimum, batata e o tempero verde).

Bolo de puba. Muito apreciado na região. É feito com os seguintes ingredientes: V k de massa de puba, 1 xícara de massa de fermento, 3 xícaras de açúcar e 1 litro de leite. Mistura tudo no liquidificador e coloca na forma para assar.

Frisamos que, não existe, aqui, versões sofisticadas; ao contrário, são elaborações simples e compartilhadas com muita alegria no dia-a-dia das donas de casa do meio rural.

Destacamos, também, os saberes e práticas alimentares e a distribuição dos alimentos pela criação de pequenos animais, como, por exemplo, o porco, galinha e capão (frango castrado). Dona Isabel esclarece a importância de consumir a carne de porco que procede da vizinhança por conhecer “a confiança” do produtor. É nesse sentido que Menasche (2007: 169) esclarece: “A expressão da dádiva envolve a doação em si e os significados em que está envolta. Mas, quando se fala de alimentos e agricultura, é especialmente dádiva o trabalho, o esforço e o saber-fazer de quem plantou, colheu ou preparou a ‘comida’”.

A respeito da conserva da carne, Sr. Sebastião (65 anos, Aurora-CE) explica que “retalha, salga, coloca na bacia, retalha o toucinho, pendura em uma corda para secar, ‘enxugar’, e assim pronto para o consumo familiar e oferecer o excesso a algum vizinho que se queira agradar”.

Os laços da doação estão presentes também nos convites aos comensais. Assim, à guisa de ilustração, quando um anfitrião oferece um jantar (ou almoço) e convida o vizinho, o convocado é livre para aceitar ou não, mas, para evitar o mal-estar na relação vicinal, não é recomendável recusar o convite. E mais, com o intuito de evitar falatórios, ciumeiras e conflitos, a delicadeza do convite deve ser retribuída na primeira ocasião em que o convidado tiver oportunidade, pois ninguém quer um mau vizinho, principalmente quando se mora distante da infraestrutura básica de uma cidade grande. Nesse caso, trazemos à tona o relato de Seu Manuel (66 anos, morador de Barbalha-Ceará), quem alerta para o fato de que: “Nunca se sabe quando a necessidade vai bater em sua porta”.

Como retribuição, aquele que compartilhou não será esquecido na oferenda do alimento do vizinho. Em regra, essa prática ocorre quando um vizinho tem um item alimentar em abundância e oferece a outra família, ou seja, há uma doação da oferta para atender à necessidade do vizinho ou simplesmente para agradá-lo, já que muitos moradores rurais possuem em suas propriedades pequenas criações de animais, a exemplo de galinha, porco, gado e cabra, além de pequenas plantações de horta, ervas medicinais e fruteiras, assim eles tornam-se autossuficientes e podem realizar a troca do excedente, assim, os agrados infiltram-se na vida comum dos moradores a ponto de ser invisível nas relações capitalistas.

 

Algumas considerações

À luz da pesquisa etnográfica, apresentamos a permuta da comida, como dádiva maussiana, nas relações sociais dos vizinhos no meio rural do Cariri, que surge, a partir de uma aliança tácita visando a criação de um espaço de convivência, sociabilidade e assistência mútua.

A partilha acontece desde o plantio do milho, feijão, mandioca, hortas, ervas medicinais, criação de animais domésticos que excedem o consumo familiar, bem como, a transformação do alimento em conhecimento de técnicas voltados ao plantio e consumo apoiados na agricultura familiar e os saberes, a exemplo, das receitas culinárias típicas do local, além do compartilhar das iguarias nos momentos festivos das famílias.

Predomina nesse sistema de troca, a economia com base no espírito da reciprocidade e rompe à lógica da economia capitalista atrelada ao valor materializado do dinheiro. Dessa forma, observamos que o referido intercâmbio aproxima os compadres e comadres,

fortalece a identidade cultural, melhora a economia do pequeno agricultor e sustenta o modo de vida na comunidade rural analisada.

 

Bibliografia

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Recibido: 9-2-2017 Aprobado: 20-6-2017

*Este artículo se enmarca en el proyecto de investigación Comer, rezar e (com)partilhar na Festa de Renovação do Sagrado Coração de Jesus no Cariri Cearense, financiado por la Coordinación de Perfeccionamiento de Profesionales de Nivel Superior (Capes, 2013-2014), inscrito en la línea de investigación Historia de la cultura y alimentación, del núcleo de Estudio, Investigación y Extensión en Educación Física. Desde 2012 se desarrolla en el Departamento de Educación Física de la Universidad Regional del Cariri (Urca).

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